DIREITO SUCESSÓRIO: OS ENTEADOS TEM DIREITO A HERANÇA DE PADRASTOS E MADRASTAS?
RESUMO: O presente informativo tem como fim discutir se o enteado tem direito a herança deixada por seu padrasto ou madrasta. O assunto vem à tona especialmente pela ampliação do conceito jurídico de família, muito mais flexível e com olhares mais casuísticos. Sendo integrante de uma nova família, essa possibilidade de herdar seria regra ou exceção? Como se verá, é exceção, exigindo-se filiação socioafetiva.
Sumário: I. Introdução; II. O que diz o ordenamento; III. Exceção; IV. Conclusão.
I INTRODUÇÃO
Contemporaneamente, o conceito de família se torna cada vez menos rígido, de modo que sua configuração possa ser feita de variadas maneiras. Juridicamente, ainda que a lei não ande na mesma velocidade que as mudanças sociais, o instituto da "família" também está em constante processo de ampliação. É nessa exata medida, por exemplo, com o aumento de divórcios e novas constituições familiares, que cada vez mais pessoas se encontrem na figura de "enteado", isto é, filho de uma relação anterior de um dos cônjuges, em relação ao padrasto ou madrasta.
Temporalmente, analisando-se as mudanças constitucionais, pode-se remontar, talvez, a gênese dessas discussões quando da aprovação de possibilidade no divórcio no Brasil. Isso ocorreu por meio da Lei do Divórcio (Lei 6.915/1977), desencadeando a Emenda Constitucional nº 9 da Constituição do regime militar. O divórcio, à época, requisitava um tempo mínimo de casamento antes do divórcio, porém, agora, com a Emenda Constitucional nº 66 da Constituição Cidadã, esse prazo não mais existe.
Sendo o enteado, portanto, integrado a uma nova família, suscita-se o questionamento: teria o enteado direito a herança de seu padrasto ou madrasta? O presente informativo tem como fim responder esta questão, apresentando qual é a regra e qual a exceção para essas situações, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio.
II O QUE DIZ O ORDENAMENTO JURÍDICO
Respondendo a pergunta que o artigo se comprometeu, em regra, não tem o enteado direito de herança em relação a seu padrasto ou madrasta. Ou, pelo menos, esse direito não é automático. Isso porque a herança entre pais e filhos (ou enteados e padrastos ou madrastas), parentes de 1º grau em linha reta, decorre da filiação. O estado de filiação pode ser adquirido de duas maneiras: (i) de fato, isto é, em decorrência da própria natureza, o nascimento do menor; ou (ii) de ato jurídico, qual seja, a adoção, que apenas se concretiza com decisão judicial.
Pois bem, o enteado não se encaixa em nenhuma das duas hipóteses, o que o exclui da possibilidade de recebimento da legítima. Dessa maneira, via de regra, o enteado apenas teria parte da herança testamentária, caso exista. Em outras palavras, apenas teria direito à herança que lhe for condedida por testamento, instrumento pelo qual o falecido dispõe limitadamente à 50% dos seus bens (parte disponível), já que os outros 50% são destinados exclusivamente aos herdeiros necessários de seus bens para após a morte. Não havendo testamento, não teria direito a herança alguma.
O motivo de não haver disposição legal que garanta a herança, portanto, é o fato de não se configurar imediatamente estado de filiação entre o enteado e a nova família. Esse novo casamento tampouco encerra a filiação que já tinha com seu pai ou mãe. O padrasto ou madrasta não substitui o pai ou a mãe, para os efeitos legais.
Em síntese: o novo casamento, que gera a relação entre enteado e padrasto ou madrasta, não altera, em regra, os efeitos sucessórios. Permanece, portanto, exclusivos aos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge) pelo menos 50% dos bens do falecido. A ordem, outrossim, permanece a mesma do art. 1.829 do CC.
No entanto, como dito, existe exceção a regra.
III EXCEÇÃO
A exceção se dá em casos de socioafetividade, podendo configurar, inclusive, multiparentalismo. Nessa medida, a possibilidade de o enteado se tornar herdeiro legítimo não decorre do fato de ser enteado, mas da socioafetividade para com o seu padrasto ou sua madrasta. O ordenamento jurídico pátrio já reconhece que a filiação pode ser adquirida, também, por meio da socioafetividade, sem prejuízo de isso ser coisa diferente da adoção.
A adoção extingue o poder familiar da família biológica, com eles não tendo a criança mais relação jurídica. A filiação por socioafetividade, por sua vez, não necessariamente encerra o poder familiar com seu pai ou mãe, podendo, por isso, se enquadrar em um cenário de multiparentalidade, isto é, o pertencimento a mais de uma família, com seu bônus e ônus.
Mas, afinal, o que é a filiação socioafetiva? É o reconhecimento jurídico da maternidade ou paternidade com base no afeto, sem vinculação biológica entre as partes. Esse reconhecimento se dá, necessariamente, por decisão judicial, no qual o magistrado verificará se existem provas que demonstrem essa afetividade, buscando observar se a relação é pública, contínua, duradoura e consolidada. Esse reconhecimento, inclusive, pode ser feito após a morte. Com a decisão judicial, o magistrado determinará que se inclua o nome do pai/mãe afetivo, bem como dos avós, sem, contudo, obrigatoriamente retirar o nome dos pais biológicos. Em tempo, cumpre lembrar que é vedado pelo regime legal qualquer diferenciação entre os filhos biológicos e não biológicos, gozando dos mesmos direitos, inclusive sucessórios.
Nessa medida, o enteado apenas teria direito à herança se reconhecido, judicialmente, a filiação afetiva entre ele e seu padrasto ou madrasta. Não havendo diferenças entre filhos biológicos e não biológicos, o enteado teria direito à legítima. A filiação socioafetiva não tem norma legal positivada que a preveja, porém, os tribunais pátrios são pacíficos em admiti-la.
A esse respeito, quando é reconhecida a filiação socioafetiva, mas não se encerra a filiação com seu pai ou mãe biológicos, ocorre um caso de multiparentalidade. Muito embora este tema ainda seja motivo de muitas polêmicas, entende-se que a multiparentalidade enseja que, nesse caso que estamos debruçados, o enteado tenha direito à legítima de todos os ascendentes com quem tem filiação. Não é, contudo, apenas de bônus que resta a multiparentalidade, pois as obrigações decorrentes para com seus ascendentes também são estendidas a nova filiação.
IV CONCLUSÃO
O número de enteados no Brasil cresce na mesma proporção em que se aumenta a quantidade de divórcios e novos casamentos. Dentre tantas questões jurídicas que esses fênomenos ensejam, uma é a do direito à herança por parte do enteado. Como foi verificado, em regra, o enteado não tem direito seu padrasto ou madrasta, uma vez que com eles não se cria filiação automaticamente, tampouco se encerra esse estado com seu pai e mãe biológicos. No caso, apenas teria direito à herança testamentária, caso, em vida, o falecido tenha deixado para o enteado.
Contudo, como diz o ditado popular, para toda regra há uma exceção. Não é diferente nesse caso. O enteado pode ter direito à legítima desde que seja reconhecida, judicialmente, a filiação socioafetiva entre ele e seu padrasto ou madrasta. A filiação decorreria da socioafetividade, não do simples fato de ser enteado. Não é filiação específica do enteado, mas de qualquer pessoa que adquire filiação com outrem com o qual não tem vínculo biológico.
Conforme se verificou, ainda, existe a possibilidade de essa filiação socioafetiva com o padrasto ou madrasta pode significar multiparentalidade, cada vez mais admitida no Brasil, significando, destarte, que o enteado teria seus direitos e obrigações com o seu ascendente estendidos a essa nova filiação, não extinguindo os mesmos com os ascendentes biológicos.